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O desenvolvimento como mistério

  • Foto do escritor: Thais Silva
    Thais Silva
  • 2 de set. de 2024
  • 6 min de leitura


Em nosso tempo, a infância vem sendo fortemente tomada como palco de intervenção das mais variadas disciplinas, e sua compreensão encerrada na sentença de especialistas. Compreendida como tempo cronológico, a infância corresponderia à "fase primordial", tal como o ponto inicial de uma reta. Pelo emprego de variadas práticas de correção e prevenção, estruturam-se não somente regulações de comportamento, mas também morais, com vistas à produção de desdobramentos desejáveis para a assim definida "boa vida adulta". Tratando metafisicamente o existir, nossa tradição tornou possível um mundo no qual nos compreendemos enquanto um eu encapsulado posicionador das coisas, o responsável (no sentido de causador) da possibilidade de algo vir ou não a ser. E é neste cenário que se estruturam prescrições de conduta para o adulto que se relaciona com uma criança, tendo em vista o desejo de garantias, tanto da produção de resultados desejáveis, quanto da prevenção de um possível desastre, localizando cedo o que está errado para ser logo corrigido. Deste modo, o campo das relações adulto-criança abre-se majoritariamente como campo de produção, cada qual aparecendo como habitante de sua mônada isolada. 


A categoria "criança" é descrita a partir de um modelo de adulto, o ideal de adultidade, e se buscam estabelecer parâmetros articuladores de comparabilidade e homogeneização, de modo a controlar e garantir um desenvolvimento correto. Assim, conhecemos uma infância cronológica, geométrica, que corresponde ao momento primeiro de uma sucessão de processos e etapas que devem ser superados em vistas ao "bom" desenvolvimento, e cujo final compreenderia o abandono da infância, o estar pronto, enfim, para tornar-se adulto. Diante de pressupostos científicos que nos aparecem como naturais, que obscurecem a criança mesma e prescrevem modos de ser junto a ela, talvez seja também possível retomarmos a questionabilidade do que aparece como aparece, marcado por obviedade e naturalidade.


As teorias científicas que fundamentam a compreensão de desenvolvimento infantil operam ao modo da descoberta de propriedades (CASANOVA, 2023), e pretendem explicar a criança a partir de estágios e propriedades universais e generalizáveis. Neste contexto, a criança que nos aparece de início é aquela que ainda não é inteira em si mesma, incapaz de se responsabilizar por si; a que ainda não sabe, ainda não viveu, ainda não conheceu. Ora, mas descrever a criança a partir do que ela ainda não é e não mostra por si mesma só pode alcançar uma negativação do fenômeno da infância e um distanciamento da criança mesma (MACHADO, 2023). Este modo de compreender o desenvolvimento humano, que aqui acompanhamos, deixa escapar algo fundamental: que o desenvolvimento é melhor compreendido enquanto mistério – enquanto o que ainda não é e pode ou não vir a ser. O incalculável, o imprevisto; a possibilidade.


Há uma bela passagem de Rilke (2011), na qual o poeta ressalta um acontecimento que se abre para as crianças, no tempo da infância, e lhes convoca à responsabilidade com quem são a cada vez, e dos adultos que com elas existem. Talvez, no sentido do que ele aqui nos mostra, possamos pensar uma vez mais sobre o desenvolvimento. A respeito da criança, ele escreve:



"E ela parece perder cada vez mais valor quanto mais poder ganha a educação, que substitui as primeiras impressões involuntárias e absolutamente individuais por conceitos tradicionais e historicamente desenvolvidos, e estampa as coisas, de acordo com a tradição, com o carimbo de valiosas e insignificantes, desejáveis e indiferentes. Este é o tempo da decisão. Ou aquela abundância de imagens permanece intacta por trás da introdução de novos conhecimentos, ou o velho amor afunda como uma cidade moribunda na chuva de cinzas desses inesperados vulcões. Ou o novo se torna a trincheira que protege um fragmento do ser-criança, ou se torna a enchente que destruirá brutalmente. Isso quer dizer que a criança fica mais velha e sensata no sentido burguês, como cerne de um cidadão útil, entra na ordem de seu tempo e recebe sua benção, ou simplesmente continua a amadurecer tranquilamente no mais fundo de seu ser, a partir de seu mais íntimo ser-criança, e isso significa que se torna pessoa no espírito de todos os tempos: um artista"

(RILKE, 2011, p. 136)



Esta passagem me provoca a cada leitura. Neste momento em que escrevo, ela me faz pensar em uma educação preocupada e estruturada no sentido da produção de cidadãos úteis; resumida ao ensinamento de padrões de conduta, regras morais, comportamentos adequados, fatos do mundo a serem conhecidos. Educação propícia para um tempo voltado à funcionalidade, ao controle, ao atarefamento constante. Tempo em que se precisa buscar meios de se defender dos perigos da mobilidade, pois o diverso nos assalta como ausência de segurança, confiança, estabilidade para ser. Se ser adulto cada vez mais fortemente se tornou sinônimo de segurança pela retenção ao uno, desempenho de tarefas e funções rígidas, não significa que assim o seja para uma criança, ou mesmo para o ente humano em geral. Segurança e estabilidade não coincidem com previsibilidade. Se educar é também tornar possível estabilidade para ser - no sentido da segurança e confiança fundamentais para o crescimento de cada criança -, o poeta nos permite pensar em uma ação educacional que não corresponda meramente a uma apresentação tirânica e engessante do mundo.


Ao adulto se abre como possível ser ao modo de uma presença que, na relação mesma com cada criança, lhe convida a movimentar-se à cidadã útil, repetindo as orientações não criadoras do mundo; assim como, a cada vez, é possível ser um adulto que lhe convida a animar-se na abundância de imagens como condição de todo novo conhecimento, e experimentar ser também inundado por este vasto possível. Sem que com isso o adulto seja o elemento determinante, decisivo sobre o vir-a-ser da criança. Ele acompanha sem jamais lhe encerrar, tal como não somos mero produto do aprendizado vivido.


Ser criança pode ser mais do que o período de preparação para algo, do que uma fase que será abandonada quando concluído seu pleno desenvolvimento. Como ressalta Rilke (2011), é também um tempo de decisão. E aqui faz-se fundamental compreender o desenvolvimento para além do sentido metafísico, como mais do que o mero percurso de seres previamente dados que trilham o necessário para realizarem o já esperado. O sentido de desenvolvimento numa perspectiva fenomenológica melhor se aproxima da descrição feita por Cytrynowicz (2018):



"Na sua mais ampla generalidade, o desenvolvimento humano somente pode ser descrito como possibilidades e não como processo determinado de uma possibilidade. Esse sentido, aparentemente, não tem sido considerado nas teorias psicológicas generalistas. Pois, não se pode jamais de antemão garantir qual será a direção seguida por cada desenvolvimento" (CYTRYNOWICZ, 2018, p. 75)



Não nos aproximamos do desenvolvimento humano compreendendo-o enquanto realização de um processo previsto, pois ele sempre trata originariamente do mistério: matéria do futuro. E, justamente por isso, não pode ser pensado como método para a produção de um certo fim, nem de um certo mistério – o que aqui acabaria sendo equivalente. Trata-se do reconhecimento da impossibilidade de determinação e de previsibilidade. Como afirma Arendt (2016, p. 310): "nada que possa ser medido pode permanecer imenso; toda medição reúne pontos distantes e, portanto, estabelece proximidade onde antes predominava a distância", e a compreensão existencial do desenvolvimento talvez permita outros modos de relação com as crianças.


Se as relações entre adultos e crianças puderem se orientar para além da tentativa incessante de controlar, de retificar a pluralidade que constitui propriamente a condição humana, poderão também guardar a possibilidade do "ainda não" de cada criança - não como o que lhes falta e será preenchido, mas como o que anima a curiosidade que lhes movimenta em direção a descobrir, brincar, criar. O misterioso, o imprevisto como condição do novo. O "ainda não" como convite à proximidade do que pode ou não vir a ser.


- Thais de Lima e Silva

2024




Referências Bibliográficas


ARENDT, H. A Condição Humana. 13. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2016.


CASANOVA, M. A. Mundo e historicidade: leituras fenomenológicas de ser e tempo: volume 3: uma estranha introdução. 1. ed. Rio de Janeiro: Via Verita, 2023. 208 p.


CYTRYNOWICZ, M. B. Criança e Infância: Fundamentos Existenciais, Clínica e Orientação. 1. ed. Lisboa: Chiado, 2018. 330 p.


MACHADO, M. M. Para as crianças de agora: uma perspectiva artístico-existencial. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2023.


RILKE, R. M. A melodia das coisas: contos, ensaios, cartas. 1. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011.












 
 
 

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